Grupos do luto compartilham jornadas de dor e ajudam famílias a decidir sobre pertences e redes sociais de quem partiu

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Reuniões passaram a atrair mais gente depois da pandemia. Eventos, como a revoada de balões no Dia de Finados, ajudam participantes do Amigos Solidários a trocar experiências sobre o luto
Reprodução/Facebook
Em abril deste ano, a professora Tatiana Gonçalves perdeu para a Covid o marido, Antônio, com quem estava casada havia 18 anos. Com o baque da morte, Tatiana se mudou para a casa da mãe — e até hoje não conseguiu voltar ao apartamento que dividia com o companheiro.
“Criei um bloqueio, porque tudo na casa lembra ele. Não aguento nem olhar. E as pessoas não aceitam, acham que eu tenho de enfrentar isso de uma vez”, contou Tatiana ao g1.
O coronavírus levou a dor do luto a Tatiana e a outras 65 mil famílias no RJ desde março do ano passado. A saudade e a tristeza que parecem não ter fim — e muitas vezes paralisam quem ficou — impõem ainda questões práticas: o que fazer com os pertences, como roupas e acessórios? O que acontece com as redes sociais? Como reaprender a viver diante da perda repentina?
Tatiana foi acolhida pelos Amigos Solidários, um dos grupos no Rio que ajudam a lidar com o luto — e com todas as questões práticas — em reuniões públicas onde jornadas com a dor são compartilhadas.
“No Amigos Solidários encontrei gente que entende o que estou passando. Aprendo com a experiência e o erro dos outros enlutados”, afirmou a professora.
“Já estou começando a lidar com as redes sociais do meu marido, que vou transformar num memorial. Mas ainda não sei se quero me desfazer das coisas dele”, emendou Tatiana.
Aumento na procura
A assistente social Márcia Torres numa das reuniões semanais do Amigos Solidários na Dor do Luto RJ, na capela do Cemitério da Penitência, no Caju
Reprodução/Facebook
O Amigos Solidários foi criado em 2011 pela professora e assistente social Márcia Torres. Ela percebeu um aumento na procura por apoio durante a pandemia. Os encontros semanais, que reuniam 15 pessoas, passaram a atrair até 40 enlutados — que se reúnem na Sala Ecumênica do Crematório da Penitência, no Caju, Zona Portuária.
Há ainda sessões pela internet, com 10 parentes em média, desde março.
“Os parentes não têm tempo para vivenciar o luto, não podem nem se despedir dos entes queridos. Então, buscam os grupos de luto para sair dessa tristeza profunda, que paralisa”, afirmou Márcia.
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Reprodução/Facebook
“Quem perdeu um parente quer falar, quer ser ouvido, quer chorar, extravasar a tristeza. Na Amigos Solidários, elas encontram outros enlutados, trocam vivências e trabalham a ressignificação de suas perdas”, emendou. “Muita gente age por impulso e depois fica ainda mais triste ainda porque não tem como voltar atrás”, destacou Márcia.
A troca de experiências, segundo a assistente social, ajuda os parentes “a sair da inércia e a tomar decisões pessoais e práticas”.
“Não há uma receita sobre o que fazer com os objetos do morto. Há quem queira guardar lembranças, outros querem doar. E mesmo com redes sociais é preciso ponderar. Há casos em que a manutenção das redes sociais só causa mais sofrimentos”, detalhou Márcia.
Transformação da dor em esperança
A comerciante Ana ‘Totolinha’ Costa, como filho Lucas, que se suicidou aos 19 anos: dor transformada em esperança
Arquivo Pessoal
Ana Costa, conhecida como Totolinha, criou o Filhos Eternos — Cavaleiros da Luz e do Amor há cinco anos, quando seu filho, Lucas, tirou a própria vida aos 19 anos.
Além da dor, Totolinha teve de aprender a lidar com críticas e insinuações de que não era uma boa mãe.
“Tive de buscar motivações para seguir adiante. Foi um baque. Antes mesmo de enterrar o meu filho, tive de pedir a retirada do ar das redes sociais porque já estavam circulando fotos dele com mensagens incentivando jovens a tirar a própria vida”, lembrou.
“As pessoas não entendem que a depressão, que leva ao suicídio, é uma doença que age de forma silenciosa e perigosa. Fiquei arrasada, não queria fazer mais nada”, destacou.
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Totolinha retirou do ar redes sociais do filho Lucas, que se suicidou, e guardou poucos objetos pessoais como os óculos e fotos
Arquivo Pessoal
“Minha mãe descobriu o Amigos Solidários, e começamos a frequentar as reuniões, que me ajudaram muito, principalmente a me conhecer e saber das minhas possibilidades”, disse Totolinha.
Aos poucos, a comerciante começou a se recuperar e, como forma de homenagear o filho, decidiu transformar a dor em saudade. A partir da troca de experiências com outros enlutados, ela fundou o Filhos Eternos, específico para famílias que enfrentaram um suicídio.
As reuniões e palestras mensais, com até 40 pessoas, ocorriam no salão do prédio da mãe dela, no Rocha, na Zona Norte. Hoje, o espaço está pequeno para a média de 50 a 60 pessoas que a procuram, e ela já busca outro espaço.
“Em todo o processo do luto é fundamental conversar, chorar, ouvir outras histórias. E achei que o certo a fazer era transformar a dor em esperança”, disse a comerciante.
No dia 23 de maio, aniversário do filho morto, Totolinha Costa distribui bolo e kit festa para crianças de rua com o grupo Filhos Eternos
Arquivo Pessoal
Além do apoio psicológico, que oferece aos participantes do Filhos Eternos, Totolinha começou desenvolver um trabalho social. Segundo ela, era importante buscar uma motivação para continuar vivendo.
“Decidimos fazer refeições para distribuir a sem-teto. Todos os sábados, o grupo distribui 150 quentinhas em ruas e praças da Zona Norte. E no dia do aniversário do Lucas, 23 de maio, distribuo bolo e kit festa para as crianças na rua”, detalhou.
“Eu sempre digo: o luto é eterno, mas o sofrimento é opcional. A gente pode tirar lições da dor”, disse Totolinha Costa.
Totolinha e grupo Filhos Eternos Cavaleiros da Luz e do Amor transformaram a dor do luto em esperança: distribuem 150 quentinhas todos os sábados a moradores de rua
Arquivo Pessoal

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